sábado, 30 de março de 2013

De: Raimundo da Mota de Azevedo Correia ( 1859-1911)

                     AS POMBAS
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.

        Mal Secreto - Raimundo Correia

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

        


Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (1855/1908)

                                                                         
                                        Velha Anedota 
                    Tertuliano, frívolo peralta, 

                    Que foi um paspalhão desde fedelho,
                    Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
                    Tipo que, morto, não faria falta;

                    Lá um dia deixou de andar à malta,
                    E, indo à casa do pai, honrado velho,
                    A sós na sala, diante de um espelho,
                    À própria imagem disse em voz bem alta:

                    - Tertuliano, és um rapaz formoso!
                    És simpático, és rico, és talentoso!
                    Que mais no mundo se te faz preciso? -


                    Penetrando na sala, o pai sisudo,
                    Que por trás da cortina ouvira tudo,
                    Severamente respondeu: - Juízo. -
                    

                                             
Sorte
                   
Depois que se casara aquela criatura,
                    Que a negra traição das pérfidas requinta,
                    Eu nunca mais a vi, pois, de ouropéis faminta,
                    De um bem fingido amor quebrara a ardente jura.

                    Alta noite, porém, vi-a pela ventura,
                    Numa avenida estreita e lobrega da quinta...
                    Painel é que se cuida e sem color se pinta,
                    De alvo femíneo vulto ou madrugada escura.

                    Maldito quem sentindo o pungitivo açoite
                    Do desprezo e na sombra a sombra de um afeto
                    A pular uma grade, um muro não se afoite.

                    - Prometes ser discreto? - Ó meu amor! prometo...
                    Se não fosses tão curta, ó bem ditosa noite!
                    Se fosses mais comprido, ó pálido soneto!
                                   Artur Azevedo

De: Olavo Bilac (1865-1918)

       
                      Via Láctea
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
      
                Língua Portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

                em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
                E em que Camões chorou, no exílio amargo,
                O gênio sem ventura e o amor sem brilho

De Augusto dos Anjos (1884-1914)

                                            Versos  Íntimos
 
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
                             
                      A meu pai doente  

Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!

Que cousa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!

Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!

- Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!




sábado, 23 de março de 2013

José Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805)




Já Bocage não sou!... À cova escura

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.


Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!... Tivera algum merecimento
Se um raio de razão seguisse pura!


Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria.


Outro Aretino fui... A santidade
Manchei - ... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!


Saiba morrer o que viver não soube 

Meu ser evaporei na lida insana
do tropel de paixões que me arrastava.
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
em mim quase imortal a essência humana.


De que inúmeros sóis a mente ufana
existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
ao mal, que a vida em sua origem dana.


Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta e si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube
ganhe um momento o que perderam anos
saiba morrer o que viver não soube.


De: Florbela Espanca (1894-1930)


Vozes do mar

Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d’oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...

Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d'epopeias? Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
... Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!



Lágrimas ocultas 

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!